sábado, 11 de agosto de 2007

Carta a João Bonifácio, Publico, 11-8-07

Ao artigo «Do download "ilegal" e da natureza humana».
Caro João Bonifácio,
Estive a ler o seu comentário, no Publico, bastante aprofundado acerca dos argumentos dos defensores e dos restridores do Download.Para alem dos argumentos bem expostos - lamento mas não entendi bem a apologia do aborto, a não ser quanto áo conceito de visibilidade.
Parece-me que a questão do download não se esgota apenas na questão da sua materialidade. Mas antes num proposito mais vasto, e que o João Bonifácio toca ao de leve. O egoismo das sociedades capitalistas. Na verdade parece que nada deve ser partilhado livre e abertamente, a não ser que por isso se receba mais do que um valor estipulado arbitrariamete (não é preciso ler Marx para estas coisas). A ideia de livre partilha nas nossas sociedades é ainda tão revolucionária que quando alguém está dispoto a partilhar algo, dá-se logo o su-ru-ru do costume. Já ouviu concerteza falar na "teoria do aspirador" praticada em algumas cidades em que certos electrodomésticos são partilhados por um predio inteiro, por exemplo um aspirador que numa casa só funciona numa semana 5% do tempo pode ser partilhado por varias familias. Isso colocou a industria de cabelos em pé. Hoje há comunidades reais cada vez mais prontas a partilhar, não só instrumentos, mas tambem competências. O mundo não está assim tão individualista e pragmatizado.
Eu relembro que há bandas que só produzem para o download. Eu próprio o faço. Produzo para partilhar, não para obter um lucro ou uma benesse. Mas isso não implica recusa de uma contrapartida. Se eu lhe der uma musica e você aceitar, tudo bem. Se me quiser recompensar ou dar algo em troca eu aceito. Não há nenhum mal no dinheiro, em aceitar dinheiro. O que muitas vezes desvirtua a criação é a que é feita baseada numa suposição de "aquilo que o Sr. Dr. Mercado quer". E numa expectativa.
É obvio que a industria musical sofreu recuos na sua maquina de produção. Mas tambem conheceu inovação. Ficou mais atenta. Dá mais espaço a bandas "novas". Incita á criação. Abriu sites para divulgação de eventuais candidatos á gravação de um álbum. Aposta em franjas de mercado minoritárias.E olhe-se para os festivais: a diversidade é cada vez maior.Lembro que nos anos 80 a mesma industria queria proibir a comercialização de cassetes. A Sociedade Portuguesa de Autores quase avançava com uma lei nesse sentido em Portugal.Luis filipe Barros, D.J. do Rock em Stock na Radio Comercial, (com Miguel Esteves Cardoso) gravava em cassetes ("a altas horas da noite" citação de M.E.C.) da Radio Brussels algumas das bandas que passava no seu, na altura, popular programa e que melhor vendia no designado sector Independente europeu. E que a industria portuguesa logo perseguiu.Muita da divulgação musical foi, nessa época, feita atraves da gravação de cassetes. No liceu eu estava sempre a pedir gravações - era um chato - a quem estava bem apetrechado de musica. Tinha lá dinheiro, para os Pistols, Joy division, Clash, - até os GNR e os Xutos - que ouvia na radio. E tinha lá paciência para a televisão.
Hoje uso o download para a mesma tarefa.
No entanto há outra coisa que se apresentou. Não faço downloads de qualquer coisa, procuro uma musica, ou ouço-a directamente de um qualquer site, se eu a gravar por exemplo no Adobe Audition - e depois converter em MP3? É download é pirataria? É apenas gravação? Se a gravar de rádio?
Tal situação não devia passar apenas no caso de reprodução publica?Eu posso ter duzentos downloadas se forem apenas para meu uso onde está o crime? Mas se for para passar em discoteca, já não é? A ASAE devia inspeccionar discotecas como inspecciona os sites?Concordo consigo neste aspecto. A proibição do download vai desaparecer. A lei é muito ténue e não se pode fundamentar em valores ou moral, não tem objectividade para isso; (para lhe dar um exemplo: a prostituição é legal nuns países, não noutros; nos Estados Unidos é legal nuns estados não noutros; as mulheres não podiam votar e isso criava uma moral, hoje podem votar e isso criou outra moral; antes de Copérnico todo o sistema de valores baseavam-se sobre a proposição da terra ser plana e tudo girar á volta da Terra, e sabe que mais? Isso funcionava!!). Moral e valores estão sempre a mudar, consoante os interesses de grupos sociais, mais ou menos dominantes na sociedade. A lei estabelece-se por esses parâmetros. Na recente história de Portugal a lei sobre a propriedade tem percorrido quase todo o espectro possivel - do comunitarismo ao quase hiperindividalismo.
Por isso a lei é o que é num determinado período histórico e cultural. Muda a história aculturam-se os povos, mudam as leis.
A internet colocou isso em evidência. E colocou em evidência a fragilidade do poder dos homens. Que para isso não estavam preparados. E ao não estarem, lei para cima!
Curiosamente são aqueles que nas suas canções se dizem libertadores.
A principal qualidade da internet é ter posto uma serie de gente em contacto com outra série de gente (já não «uma certa quantidade de gente atrás de uma outra quantidade de gente» como dizia o Mario Cesariny). Se o download não for possivel pelos meios actuais, e disto não tenha duvida, vai ser possivel por meios mais sofisticados e eficazes. Aliás todas as restricções servem para faze apurar o "negócio".

Cumprimentos,

Augusto M. Deveza Ramos

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